Veríssimo - Bárbaros
Bárbaros
Luis Fernando Veríssimo, O Globo, 11 de janeiro de 2007
A hipocrisia é uma característica comum dos impérios, mas alguns exageram. Quando a rainha Vitória se declarou chocada com os bárbaros chineses em revolta contra os ingleses, no fim do século dezenove, não mencionou que a revolta era uma reação dos chineses à obrigação de importar o ópio que os ingleses plantavam na Índia, tendo destruído sua agronomia no processo.
Os ingleses obrigaram os hindus a abandonarem culturas tradicionais para produzir ópio e foram á guerra pra obrigar os chineses a consumi-lo, num momento particularmente bárbaro da sua história. Mas ninguém nunca se declarou muito chocado com o comportamento da rainha Vitória, fora as especulações sobre o seu caso com um cavalariço.
Havia sempre bárbaros convenientes nas fronteiras dos impérios: orientais fanáticos, monstros primitivos, dervixes messiânicos, tiranos sanguinários. Legitimavam a conquista colonial, transformando-a em missão civilizadora, enobreciam a raça conquistadora pelo contraste e -- em episódios com o da Guerra do Ópio -- disfaçavam a barbaridade maior dos civilizados com a truculência já esperada de raças inferiores. A hipocrisia imperial continua e agora chegou a outro auge na reação à execução desastrada do Saddam Hussein. Um comandante americano no Iraque declarou que se eles fossem encarregados de matar o monstro teriam feito diferente. Claro que fariam. Quando Bush era governador do Texas, não pensou em suspender nenhuma das mais de 150 execuções realizadas no estado durante seu governo, certamente confiante que todas seriam civilizadas e tecnicamente impecáveis. Mas o que se poderia esperar de bárbaros se não um enforcamento indigno? Como se qualquer modo de enforcamento, ou qualquer modo de execução, pudesse ser digno. A CIA terceirizou a tortura, levando suspeitos para serem interrogados por bárbaros úteis em países com norrau no assunto. Longe da civilização americana, que não faz essas coisas. Presume-se que os agentes da CIA tapem os ouvidos durante as sessões de tortura, para não serem conspurcados pela indignidade alheia.
Tony Blair, a rainha Vitória do momento, também se declarou chocado com a execução pouco civilizada de Saddam. Não teve os mesmos escrúpulos ao apoiar o ataque ao Iraque justificado com mentiras que ele sabia serem mentiras, como prova o famoso memorando em que lhe contaram que os americanos estavam adapetandos os fatos à decisão, já tomada, de invadir. E já devem ter morrido mais iraquianos e anglo-saxões no Iraque do que chineses e ingleses na Guerra do Ópio.
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