Artur Xexéo
Um telefonema na madrugada
Artur Xexéo, Revista O Globo, 11 de março de 2007
No divertido perfil de Preta Gil publicado, no domingo passado, aqui na revista, a cantora... Não, chamar Preta de cantora é reduzir demais as suas muitas atividades. Pois, então, aqui na revista, a múltipla Preta Gil relacionava as coisas que a assustam. Com exceção de "esquecer a fala no palco", experiência muito particular de uma determinada profissão, os temores de Preta são mais ou menos os temores de todos nós. Ela teme crises de consciência, violência e intolerância. Assim como a torcida do Flamengo, e a do Vasco, e a do Fluminense... Preta se assusta com Bush e com o casal Garotinho. Eu também, Preta! Eu também! E com a possibilidade de "levar caixotes no mar". Aí eu cheguei a pensar que não tinha nada a ver com Preta, pois, há mais de dez anos, não me aproximo de nada parecido com uma onda. Para mim, praia só com água clorada e azulejos no lugar da areia. Mas, pensando bem, será que não me afastei da praia exatamente porque tinha medo de levar caixote no mar? Pronto, fiquei igualzinho à Preta Gil outra vez.
Mas, de todas as coisas que assustam Preta, aquela com que mais me identifico é o "telefone tocando de madrugada" e "perder alguém que ama". Como se vê, são duas coisas. Mas Preta não me engana. Uma é inteiramente relacionada com a outra.
O toque do telefone de madrugada é realmente assustador. Mas não é assustador em si. A gente sabe que ninguém telefona de madrugada se não tiver uma notícia ruim para transmitir. E notícia ruim, ruim a ponto de precisar ser transmitida por telefone de madrugada, só pode ser sobre a perda ou a ameaça de perda de alguém que a gente ama.
Convivi muito tempo com telefonemas de madrugada. Esse período durou mais ou menos os últimos cinco anos de vida de minha mãe. Ela estava doente. Tinha insuficiência renal e problemas de pressão. Mas o que ela temia mesmo era um infarto. Pelas estranhas razões que movem nossos temores, minha mãe não tinha medo de sofrer um infarto pela manhã ou de tarde. Um infarto depois do café da manhã, na hora do chá ou durante a novela das oito era algo que não passava pela cabeça dela. Infarto, mesmo, só aconteceria de madrugada. Assim, pelo menos uma vez por semana, ela me telefonava, de madrugada, certa de que alguma coisa estava acontecendo com seu coração. A família inteira era mobilizada. Todos se reuniam na casa dela. Chamávamos o médico, muitas vezes uma ambulância, outra vezes íamos para o hospital para, quase sempre, descobrirmos que tudo não passava de um ataque de nervos. Era fita, como se dizia lá em casa.
Durante todo esse tempo, não me lembro de uma só noite de sossego. O sono era sempre interrompido pelo telefonema da madrugada ou pelo medo de não escutar o possível telefonema da madrugada.
Depois da morte de minha mãe, custei a descobrir o que continuava mantendo meu sono inquieto. Hoje sei que é a certeza de que nunca mais serei acordado por um telefonema dela de madrugada. Fazendo fita. Do que mais sinto falta hoje é o que mais me assustava tempos atrás: um telefonema na madrugada.
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