Vamos ler Joyce?
Vamos ler Joyce?
O sexo falado
Joaquim Ferreira dos Santos
Jornal O Globo, Segundo Caderno, 05 de janeiro de 2004.
Sexo. Não se assuste. É só uma maneira, curta e grossa, de começar o ano indo direto ao assunto. Sexo. Eu acabei de ler as cartas de James Joyce para a mulher, no volume de “Cem melhores histórias eróticas da literatura universal”, e ele só pensava nisso. Vi, tardiamente, um dos mais interessantes filmes de 2003, “Irreversível”, e lá estavam elas, em seu estado mais sublime, as quatro letrinhas que molham. Sexo. Achei que eram desculpas suficientes para introduzir, colocar, inserir, ir com tudo, cutucar, partir pra dentro, botar a língua num assunto que, gritando sempre tão alto, roubou todos esses verbos para seu uso exclusivo. Sexo. Com muito duplo sentido. Deixa, por favor, deixa, eu também meter o dedo nessa ferida. Segura só.
Tenho, por necessidade profissional, assinatura do canal Sexy Hot e confesso que ele não só já me ajudou no trabalho solitário de escrever artigos sobre televisão e o to be or not to be da existência como também me proporcionou, em noites agitadas, chegar mais rápido ao gozo supremo de fechar os olhos e, loucura, loucura, dormir bem gostoso. Custa R$ 30 ao mês e não cria a dependência química dos remédios. Recomendo.
Ver no Sexy Hot um casal depois do outro, geralmente por trás do outro, recitando ao infinito aquele mantra de “aaaaaaahhhh” e “uuhhhhhhh”, copulando segundo as normas do erotismo pornô, ver um programa desses é uma das mais eficientes versões modernas para o velho hábito de contar carneirinhos. Não tem erro. Dorme-se muuuiiito.
Sexo, no entanto, sem querer pegar carona no cronista das terças — a poesia jaboriana de que sexo é pagão, sexo é invasão — sexo, se é que eu estou ligando o nome à pessoa, sexo, se não me falha a memória, sexo é coisa que eu nunca vi passar no Sexy Hot.
Pode ser que os casais dos filmes me esperem dormir para, aí sim, adentrarem no melhor do sexo, que é quando rola a grande saliência da intimidade. Acho pouco provável. Acho, e quem acha tanto acaba se perdendo, que quando eu durmo eles correm é para fazer o mesmo, cansados da repetição daquela aeróbica truculenta. Em alguns momentos são tão repetitivos que eu já jurei ter visto um rapaz fazer nos seios de uma moça o mesmo gesto do operário do Chaplin, em “Tempos modernos”, torcendo pela milésima e triste mecânica vez os parafusos da máquina. Se eu fosse crítico de cinema poderia ver ali um sinal de metalinguagem. Mas o problema do pornô é justo esse. Mete-se tudo, menos linguagem.
Amor é inverno, sexo é verão, e esse é mais um motivo para passar um óleo de amêndoa no assunto, virá-lo de ponta-cabeça e sugerir que, devagarinho, pelas costas do Sexy Hot, se vá nesse dias quentes até a Sala Laura Alvim, de frente para o mar de Ipanema, ver “Irreversível”. O filme, na maior parte do tempo uma experiência radical de câmera e violência, traz no seu umbigo, como contraponto de felicidade, uma das mais bonitas cenas de sexo da história do cinema.
Amor pode ser livro, como quer o Jabor, mas sexo não é uma aula de educação física, como quer o Sexy Hot. Sexo, se tivesse uma cadeira, e é sempre bom que tenha uma por perto, num curso universitário não seria Anatomia. Sexo é Diplomacia. Se é que — a poucos dias do carnaval, a poucos dias da minha saudade pelas marchinhas de duplo sentido — se é que estamos falando do mesmo gentil e determinado canudo.
Eu não sabia, foi a cinéfila cubista do Estação quem me contou e nela boto tudo que é malícia e fé: o casal rolando na cama de “Irreversível”, cuspindo com carinho as mais torpes fantasias do sexo verbal na orelha do outro, é casado na vida real. Faz sentido. Nada daqueles esgares ridículos que mais parecem Jason, o carniceiro, pegando de jeito Carrie, a estranha. Nada de estocadas profundas e dolorosas. O chicote que estala na pele do casal de “Irreversível”, e daí nasce o erotismo da cena, a descoberta de novas zonas de prazer, uma diagonal molhadinha conectada do lóbulo ao quarto gomo do cerebelo — o chicote é o do verbo amoroso.
Os atores das pegadinhas do Sexy Hot dão a impressão, embora as atrizes dêem muito mais que só a impressão, de terem acabado de se conhecer no estúdio. Não se beijam na boca no intervalo das 34 posições repetidas em todos os filmes. Confundem a relação com um festival de violência física. Sexo entre desconhecidos, gente que chega ao orgasmo sem se abraçar, é broxante. Mais triste, a língua está sempre no lugar errado, é o sexo mudo desses atores pornôs. Os homens acham que o “V” da vida é o de Viagra. As mulheres acham que é de vibrador. Mas eu vi “Irreversível”. Eu também já desconfiava, meninos, e agora , depois de ler as cartas de James Joyce para Nora, no best-seller que está nas livrarias, também não tenho mais dúvida e vos digo. O “V” que estala vigor de vida no sexo é o vibra-verbo dos amantes íntimos.
Você não precisa engolir a pílula e emporcalhar o fígado de azul, não precisa comprar pilha radioativa e poluir o ecossistema. Basta jogar, dentro da orelha fria, como ensinava o jovem poeta morto, segredos de liquidificador — e agradecer a Deus pelo suco que vem, abre a boca que vem, desse chacoalhar divino de frutas. James Joyce concorda. Distante da amada, o escritor dirige-lhe em cartas palavras que recuperam o jogo amoroso dos dois. Nada a ver com as experiências formais que ele andou fazendo em “Ulysses”. Joyce enche a mão com o verbo cru dos casais. Endurece o sussurro sem perder a ternura da intenção, essa safadeza subversiva que põe nexo, graça e rima, no encontro do côncavo e o convexo.
Joyce, sempre à frente de seu tempo, já sabia. Falo sem fala não é sexo. É só Sexy Hot.
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