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Local: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil

Sonhadora


Reúno aqui, palavras, idéias e sentimentos. Se algum deles for seu e você não quiser que aqui estejam, me avise. Se algum deles for de alguém e estiver sem crédito, me conte. Espero que algum texto lhe toque assim como me tocou.


15 agosto 2006

Joaquim Ferreira dos Santos - Um passeio pelas Ruas do Centro do Rio


Toucinho do céu:
um passeio pelas ruas do Centro inspirado em Rubem Fonseca

Joaquim Ferreira dos Santos
Jornal O Globo, 16 de maio de 2005



Rubem Fonseca está fazendo 80 anos e há dez o seu personagem, Augusto, saía deste sobrado na Sete de Setembro para guiar o conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, um clássico da literatura urbana. Eu, sem querer vampirizar seus passos geniais, na vontade apenas de homenageá-lo, na pior das hipóteses só para dar uma balançada no meu esqueleto magro, eu estou nesse momento saindo do mesmo prédio em que morava o Augusto de Rubem Fonseca, exatamente na Sete de Setembro 137, com a diferença de que já não existe mais a luvaria Gomes no primeiro andar, mas a casa de chá Cavé. Antes de repetir Augusto e sair para dar umas pernadas pelas calçadas dos quarteirões entre a Uruguaiana e a Tiradentes, eu peço proteção às palavras que na parede da Cavé anunciam seus doces portugueses, um aglomerado delicado de atrações como travesseiro de noiva, súplica de coco, brisa do Tâmega, lampreia de ovos, cavaca de caldas, pingo de tocha, palito de Sintra, baba de chantilly, almendrado, lamego e sortido húngaro, esses toucinhos do céu deliciosos que mais parecem poesia modernista que cardápio escrito no espelho sobre a caixa do balcão.

A Sete de Setembro é uma rua cercada de camelôs por todos os lados, já era assim no tempo em que Rubem Fonseca passou por aqui com Augusto, e não é à toa que quando eu saio da Cavé e pego a calçada à esquerda, logo ao lado da casa de chá tem o escritório central do PDT com as paredes chapiscadas de cartazes gritando que Brizola vive. A rua está repleta de valas, outra prova de que o caudilho não morre, e eu apresso o passo, recolho dezenas de panfletos me prometendo dinheiro rápido, crédito fácil sem avalista, e cruzo batido a esquina de Ramalho Ortigão, onde na ponta da Carioca o tradicional bar Flora trocou a vitrine de uísque pela de garrafas de cachaça. Bêbado com todo esse charivari de ruídos e informações, entro mais adiante, no 163 da Sete, no sebo Empório Musical. Um dos LPs preciosos na parede é o “Contraste”, R$ 50, aquele em que o Jards Macalé aparece na capa tascando um beijo na morenaça que mais tarde tornar-se-ia a fabulosa escritora Ana Miranda e que ela, arrependida de ter sido flagrada em arroubo pouco intelectual, incompatível com seus atuais títulos de seriedade literária, ela proibiria para sempre a reprodução do chamego em CD. O amor acaba. O mingau com cobertura de chocolate que eu comia na lanchonete da Rua da Conceição também acabou e a senhora chinesa que ocupou a loja, “um salgado e um refresco por R$ 1,50”, não tem a mínima idéia do que eu estou lamentando. O amor, a memória, o mingau. Quase tudo acaba. Se bobear, esse trecho do Rio por onde Rubem Fonseca foi guiando seu personagem vai pelo mesmo caminho.

Joaquim Manuel de Macedo passou aqui antes de todos nós para escrever “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”, em 1862. Certamente não tinham grafitado “Colômbia livre” na parede do prédio da faculdade de Filosofia, provavelmente uma certa Clemilda ainda não pregara no chão em frente ao Empório Musical uma placa anunciando que bate chapinha, faz dready e trança rastafari. É quase certo ainda que magotes de prostitutas não se revezavam entre alugar o corpo para os fregueses tradicionais e as firmas, quase todas salafrárias, que lhes colocam agora uma tabuleta nos peitos e costados informando comprar ouro. Joaquim Manuel de Macedo não viu nada disso. Não comprou camiseta no quiosque do MV-Brasil na esquina de Uruguaiana dizendo que “Halloween é o cacete”. Mas já naquele passeio pela cidade concluiu, olhando ao derredor, que “a desmoralização era geral. Clero, nobreza e povo estavam todos pervertidos”.

Eu não diria tanto. Vi na Sete de Setembro uma loja de sapato chamada Kaussleve, vi mais adiante o busto de Camões, na praça Alexandre Herculano, servindo de mira para os bêbados urinarem seus pleonasmos de malte e trigo. Achei irada a “meia da loba” na vitrine das Casas Olga. Me inscrevi na Igreja de São Benedito dos Homens Preto para o festival do “Espírito sopra onde quer”. Acompanhei um boy algemado no meio da rua passando pelo rádio, para o chefe no escritório, a informação de que estava sendo preso por ter dito “palhaçada” quando um PM lhe impediu de estacionar a moto na calçada. Não me escandalizei com todas essas perversões. Pode ficar pior e — já que não bato chapinha, já que o único ouro da família vovó doou para salvar o Brasil do comunismo em 64 — resolvi mudar de ares. Atravessei o Largo de São Francisco.

Passo pela Casa Cruz na Ramalho Ortigão, por um ambulante do Mr. Empada vendendo a própria na calçada da Dama da Empada, sigo pela sapataria Charme do Pé, ali no mesmo local onde outrora Olavo Bilac encostava o pé no balcão do literário Café do Java. Vou ouvir o que o locutor Altamir Souza, 40 anos, está falando ao microfone da Requinte Magazine na esquina com Ouvidor. Ele anuncia toalhas felpudas, mas a entonação da voz e a qualidade do texto são parecidas com o que ele ouve na igreja que freqüenta, a pentecostal A Nova Jerusalém, em Rocha Miranda. A impressão é de que Altamir anuncia o Espírito Santo chegando de banho tomado.

“Que Deus dê prosperidade, bênção e boas energias a todos nessa manhã”, foi mais ou menos como ele abriu os serviços dias atrás e às vezes ficava difícil ouvi-lo, não porque faltasse fé nas orelhas que tentavam, mas porque todos os comerciantes da área colocaram um microfone nas mãos de um vendedor na calçada (“ursinho ‘eu te amo’ por R$ 5”), provocando uma babel infernal que às vezes parece mais anunciar a chegada do belzebu em seu alarido de má fé. Tomei um café na Confeitaria Manon, logo em frente, já na Ouvidor em direção à Uruguaiana. Drummond e Manuel Bandeira passavam por ali a caminho da livraria José Olympio. Só pode ter sido isso. As palavras delicadas que jogaram sobre os doces e salgadinhos no balcão permaneceram no ar e fizeram a Manom cunhar nas suas atuais toalhas de mesa o slogan poético “Desde 1942 fabricando sensações”. Achei que era hora de encerrar o passeio e agradecer a companhia que Rubem Fonseca me fez entre a Cavé e a Manon. O amor acaba, o mingau acaba. As sensações não acabam nunca.