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Sonhadora


Reúno aqui, palavras, idéias e sentimentos. Se algum deles for seu e você não quiser que aqui estejam, me avise. Se algum deles for de alguém e estiver sem crédito, me conte. Espero que algum texto lhe toque assim como me tocou.


23 agosto 2006

Simonal por Falabella

Aquarela

Miguel Falabella
Jornal O Globo, Segundo Caderno, Coluna Um Coração Urbano, 29 de junho de 2000


Imagens de um país tropical e bonito por natureza Na sala de embarque, no aeroporto, um menino de 7 ou 8 anos faz uma festa com Caco Antibes, este personagem que anda colado em mim nos últimos anos. Ele ri, imita trejeitos do personagem e, depois, cansa da brincadeira e afunda o rosto num jogo eletrônico qualquer. Eu também me distraio e só volto a vê-lo dentro da aeronave, com o pai, na fileira de poltronas ao lado. Ele olha para todos os lados, corre a mão pelo braço do assento, mexe na fivela do cinto, chuta a poltrona com o calcanhar do tênis vermelho e, após alguns momentos de agitação frenética, encosta a cabeça no tecido e deixa o olhar se perder no sonho. Abro o jornal, que a aeromoça me traz com um sorriso, e há uma imensa matéria sobre a morte de Wilson Simonal. Imediatamente sou sugado pela espiral do tempo e atirado sobre o sofá forrado de plástico azul, que olhava encantado para a televisão pré-histórica. Um menino, como este aqui, a meu lado. As imagens de arquivo confundem-se com as minhas, saídas do esconderijo. O corpo magro, suado, aninhado entre a família, naqueles verões de janelas escancaradas, quando a vida lá fora movia-se em câmara lenta . O público cantando na tela da televisão e alguém que atravessava a cena com uma travessa nas mãos comentando: - Esse crioulo canta bem. - Tem suíngue - uma outra voz. - É um crioulo pernóstico - a tia, de visita, enchia a boca de sorvete de goiaba. - Eu tenho horror a crioulo pernóstico! De volta à minha poltrona, leio o resto da matéria e penso que o castigo que lhe foi imposto, o silêncio e o ostracismo, foi uma execução longa e dolorosa. Não vivi os fatos, pelo menos não na idade adulta, e não estou questionando a sentença, porque desconheço detalhes da história, mas, pelo que li nos jornais, não há provas conclusivas e há depoimentos contra e a favor, de modo que uma pergunta se instala na minha cabeça: quanto de horror a crioulo pernóstico haverá nessa condenação? Não sei... mas com o jornal aberto, na frente de meus olhos, ouvi outra vez aquela frase, com o perfume da goiaba madura de então. De qualquer maneira, culpado ou inocente, não podemos varrer o cantor que ele foi para baixo do tapete, porque não é assim que se faz. Definitivamente. Erros e acertos devem ser contabilizados. Não se justifica apagar o registro de um artista e nunca mais trazê-lo a público. Não se apaga um nome da História, de qualquer maneira. Não se apaga a história, seja ela qual for. Esse direito, não temos. É coisa de maior instância. Enfim, acabei abandonando Simonal, mas continuei no passado, porque estou cansado dos lanches de avião e não tinha trazido nenhuma leitura. Fiquei por lá, crescendo rapidamente na fantasia, pulando os anos, já adolescente, espinhas no rosto, cabelos compridos e um par de óculos inacreditável! (Meu irmão, se não me engano, foi a um show do Simonal. Eu ainda não tinha idade suficiente. Nunca temos idade suficiente, essa é que a verdade, mas tenho essa lembrança de meu irmão e minhas primas. Copiavam as gírias. A malandragem. As coisas que a gente lembra, num vôo da ponte aérea!) O menino comeu o lanche e voltou a ficar impaciente. Ele conversa um pouco comigo e perde o interesse novamente. Sei exatamente como ele se sente, eu penso. Sei o que significa um cinto de segurança. Às vezes, são insuportáveis, ainda que necessários. Houve uma época, na Ilha, que eu só pensava em atravessar a ponte e me embrenhar na selva das cidades. (Quando fiz 14 anos, peguei dois ônibus e fui sozinho a uma matinê de quinta-feira, no Teatro Copacabana, assistir a uma comédia russa. Ary Fontoura, Arlete Sales, Zilka Salaberry e um elenco enorme. Na saída, já tinha escurecido e, não sei como, acabei pegando um ônibus na Barata Ribeiro, na direção oposta a que eu deveria seguir. Saltei na altura de Ipanema, o coração batendo acelerado, completamente perdido. Pedi informações e acabei acertando o ônibus para o Centro da cidade. Olho para o talento de Ary Fontoura, contracenando comigo no "Sai de baixo", fico encantado com Arlete, que eu estou dirigindo em "A vida passa", e sempre me lembro dessa história. Eu me perdi no meu primeiro encontro com o teatro. Às vezes a gente precisa mesmo se perder para se encontrar.) Por que é que estou lembrando disso? Talvez porque eu more num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. (Às vezes, eu tenho a certeza de que Deus existe. E também tenho a certeza de que, dado ao avançado da idade, ele contraiu o mal de Alzheimer e se esqueceu da gente. Quem era mesmo que dizia isso?) O avião começa a preparar o pouso e eu arrisco uma olhada para a cidade, acabrunhada de frio. Vamos voando baixo por cima das casas, prédios e favelas. Eu acompanho o desenho dos casebres morro acima e, antes de fechar os olhos, para a aterrissagem, lembro daquele samba da Mangueira, que eu acho uma beleza: "Pergunte ao Criador/ quem pintou essa aquarela/ livre do açoite da senzala/ preso na miséria da favela". Lá embaixo, o Rio é uma aquarela cinzenta, sem as cores da sua natureza, à espera de melhores dias.